Hoje eu fiz o que há muito não fazia.
Era um dia de calor, não necessariamente de verão. Queria vestir uma roupa leve, de algodão. Sentir-me livre, como um domingo à tarde permite.
Abrindo a porta do armário, passei cabide a cabide. Voltei no vestido azul-marinho, meu preferido de outros tempos.
Acontece que agora ele fica meio apertado. Tirando isso, é perfeito: decote discreto, tecido solto, comprido até os pés. Leves estampas brancas e florais enfeitam o pano, a saia balança quando ando. O problema é que ultimamente ele andava “marcando”, e eu simplesmente não queria me ver daquele jeito.
Não porque eu tenha noção de como me vestir bem e não queira usar uma roupa que desvalorize meu corpo, mas por não conseguir me visualizar como acontecia ao usá-lo, ultimamente. Eu o evitava.
Acontece que todo o meu guarda-roupa passa mais ou menos pelo mesmo processo e a parte que não passa, está suja ou secando. Ou eu saio de casa desconfortável para evitar ver o que não quero, ou escolho o conforto, a sensação de liberdade e fico um pouco desapontada com o que vejo. E que, se eu for parar para pensar, estará igual em qualquer roupa que eu use.
Visto-o. O aperto em minha lembrança parecia maior do que realmente é, embora a silhueta ainda seja diferente da data da compra.
Tal qual uma senhora não se envergonha de suas rugas – marcas de dores e lutas e não apenas a prova de uma plástica que não houve – olhei-me no espelho com meu vestido um pouco inchado, a minha própria versão de marcas de lutas e dores.
Parei de me culpar por cada vez que recorri ao chocolate em noites de tristeza e solidão, ou tardes de croissant e capuccino que eram o máximo de passeio que eu podia ter, na maior parte das vezes. Porque entendi o que vivi: por mais externa que eu tenha deixado minha dor – e, acredite, eu a coloquei! – havia ainda uma parte de mim que estava explodindo.
Uma parte sensível que, bombardeada, testada, simplesmente foi humana, não perfeita, e não suportou o peso de tanto sofrimento e perda. Tanta mudança. Tanta violência.
Por muito e muito tempo, para conseguir entender o que sucedia, eu pensei que era necessário matar o melhor de mim, e não suportei. Encontrar na comida, muitas vezes, a única fonte de prazer, não foi apenas um descuido com a minha alimentação ou falta de autoestima: mas mecanismo de sobrevivência.
Não, não cultuo o desregramento alimentar nem a dependência de coisas externas para ficar bem. Principalmente agora, sou alegre e profundamente adepta do bem estar pessoal em todos os níveis – corporal, mental, emocional e espiritual – e da saúde, da beleza, da higiene, da ordem, da prosperidade, quando vierem naturalmente como resultado de um estado de alma, não como fruto de idolatria ou escravidão.
Contudo, ver o reflexo no espelho, ter coragem de fixar o olhar e ver-me exatamente como estava: acima do peso, fez-me compreender que aqueles dezessete quilos que eu perdi naturalmente no passado, sim, voltaram.
Que a causa desta perda natural – um estado único e profundo de felicidade – também passou, não existe mais. Vivendo em um mundo material, uma vez com a situação financeira limitada, não sou mais tão livre e passei, até, por algumas necessidades. Não posso mais escrever nem viver o êxtase de encontrar a mim mesma como vivia, pois a vida, hoje, me exige outras prioridades (e eu sempre soube, ao contrário do que me diziam, que quando aceitasse um novo caminho – por melhor e necessário que fosse e hoje, com gratidão, reconheço, seja – teria a escrita praticamente “tirada” de mim, daí a relutância em mudar).
E o amor… ah, o amor… Sim, o amor no qual acreditei a vida inteira, que vi desabrochar (involuntariamente, com muita resistência, inclusive!) dentro de mim, que VIVI (e nada, absolutamente nada que experimentei foi mais real do que isso!), de repente, sem sentido algum, como se fosse algo insignificante, simplesmente não aconteceu. Não se concretizou. O que, para nós, geralmente é o mesmo que “não é verdade”. (Ainda que não seja… Já cansei de parecer louca ao tentar afirmar isso, então, simplesmente deixemos o barco fluir).
De quebra, no meio disso tudo, meu pai também me abandonou. Eu nunca havia chorado por isso, pois simplesmente não acreditava ser possível. Mas foi. É. Eis que as lágrimas, finalmente, tiveram endereço definido, não mais abstratas, por um estado de depressão.
Quando o pano deslizou até o pé e eu me preparei para sair, parei de negar o que vivi depois do céu. Tudo isso aconteceu, sim. E, se cheguei até aqui, é porque sobrevivi.
O que restou? Quando reconheci minhas dobras, percebi que tinha forças para transformá-las novamente em desafio, em autoamor. E que, portanto, restou muito mais do que eu imaginava quando eu ainda negava o vestido que não mais cabia.
O essencial continua aqui. Lapidado. Não apenas mais maduro, reconheço. Talvez, ainda um tanto dolorido. Aprendi não pelo amor, mas por uma dor muito bruta, sendo eu tão sensível. Não fosse de Deus as leis da vida, diria mesmo que sofri uma violência. Não fosse eu consciente de minha inferioridade diante a lógica da vida, diria que formato de lição desnecessário. Desperdício de energia vital.
Todavia, não mais sem chão porque meu pai – minha referência, minha segurança, meu amigo – não está mais aqui. Não mais no chão porque o homem que eu mais admirava escolheu me achar pouco, indigna não apenas de um genuíno relacionamento duradouro, mas de simples palavras de apaziguamento entre um cristão e outro – e nada mais.
Tive tantos motivos para desistir (e cheguei perto de chegar muuuito perto), entretanto, ainda estou aqui. Sendo assim, aceitei o inaceitável, acreditei no inacreditável (com a ressalva de isso ser o oposto de mim e, mesmo assim, conseguir colocar cada coisa no seu lugar eu não mais “surtar”), possibilitando a passagem do impossível.
Aprendi, um pouco mais, a conviver com a razão e a emoção. Deixar-me levar sem racionalizar o que é para sentir, porém, não deixando o sentimento me guiar nuvem acima quando a razão tem alguma objeção séria a fazer.
Para conseguir seguir, precisei deixar os dois (bem como tudo de bom que representaram) para trás. Não há mais espaço para eles agora, pois preciso aceitar o presente, o que a vida oferece (nem sempre o que quero, no entanto, às vezes, melhor do que julgava possível), o novo. E eles, infelizmente, por opção própria, viraram passado. Não cabem mais aqui, pois eu fui obrigada a desconstruir e improvisar. Modificar.
Eu aceitei que aquele tempo já se foi. Por melhor, único, maravilhoso que tenha sido. Passou. Não é. Mudou. Acabou. Não importa mais o que era, nem o que tinha que ser. O fato é que não foi.
Como sempre, coloquei meu brinco de coração, pintei minha unha de rosa cintilante (que eu adoro) e fui passear. Renascendo. Sendo eu. Percebendo que eu ainda acredito no amor (também e principalmente neste amor de almas, transcendental – embora reconheça sua raridade no plano dos fatos, ainda), apesar de tudo. Que deixar de fazê-lo é me aniquilar. (É sim o que eu dizia ter acontecido devido à rejeição amorosa: morrer a fazer o hercúleo sacrifício de ser obrigada a respirar). Portanto, devo fazê-lo não necessariamente inspirada em fulano ou ciclano, mas por mim. Porque esta sou eu. E eu, simplesmente, gosto – e realmente gosto! – de ser assim!
Fonte imagem: apenaxx.blogspot.com